quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Day 9 - Le Tour de France

Acampamento 1 @ Itiuasha 4558m
05:20. Temperatura exterior: - qualquer-coisa-gelada. Real feel: -15•C

"Buenos dias chico! Como estas? Dormiste bien? Mate de coca?"

O despertar pelo Elias (o guia) nos dias seguintes seria sempre assim.
São 5 da manhã e sobrevivi à primeira noite. No total, devo ter dormido umas 2 horas mas ou o frio ou a adrenalina não deixam manifestar qualquer tipo de sono ou cansaço no meu organismo.

Se a noite não correu muito bem, tenho de reconhecer que acordar no sopé desta montanha, com o sol a aparecer e o silêncio e sossego que só aos 4558m uma pessoa pode encontrar, o meu ideal romântico de aventura e natureza encontrava-se totalmente preenchido.

A Maya corre pelo acampamento à volta dos cavalos. Durante a noite ainda ladrou feita maluca. O Elias diz-me que provavelmente era uma raposa, no pior dos casos, um puma (bichinho simpático que vive no Peru embora a esta altitude não seja presença habitual).

O frio serve para despertar. Luto para fechar a trouxa toda e enfiar o saco-cama no respectivo invólucro. Tarefa que se ao nível do mar já é por si complicada, a esta altitude leva-me o fôlego todo.

Preparado, saio para o exterior a caminho da messe, contornado as placas de gelo espalhadas (uns belos blocos com 2 cm de espessura).

O resto da malta também já está a pé e partilhamos as experiências da primeira noite enquanto despachamos o pequeno-almoço.

São 07:50 quando nos pomos a caminho. O programa da rotas do vento menciona uma caminhada de 5 horas. Mal sabíamos nós o que aí vinha...

O Elias diz-nos que a parte inicial é a mais dura de todo o trekking. Vamos subir até aos 4958m. Sempre junto ao Salkantay (a montanha glaciar) vamos avançando devagar. Custa arrancar e começar a caminhar. Inspira e expira, inspira e expira. A inclinação começa a acentuar-se. 70 metros subidos e primeira paragem. O Alex está com os joelhos lesionados e de imediato é intervencionado com ligaduras.

Continuamos. Cada passo é um martírio. Uma pessoa lê o quanto a altitude pode afectar uma caminhada mas senti-lo é toda uma outra experiência. A inclinação não ajuda, calculo que deve andar na casa dos 50%. Lembro-me dos conselhos recebidos e das tardes passadas a ver a Volta à França: um passo de cada vez, próprio ritmo e gerir a energia que o caminho é longo.

A paisagem é deslumbrante. Avistamos um condor, uma vizcaya (ou como raio se chama aquele bicho misto coelho-ratazana) e um lago no sopé do Salkantay. As paragens sucedem-se. Quanto mais subimos, maior é o peso da mochila, maior a inclinação, mais fôlego é necessário.

Passou uma hora e fizemos 700 metros...

O guia aponta-nos o colo da montanha que devemos ultrapassar. À primeira penso que o homem está a gozar, à segunda quase me dá uma coisa. A inclinação é descomunal, mais parece escalada.

Entretanto, os cavalos e restante staff passam por nós como se nada fosse.
Os joelhos do Alex começam a ceder e o Elias decide mandar chamar o cavalo-vassoura. A partir daqui desenvolver-se-á uma bela história de amor entre um homem e o seu cavalo (de nome "Jenko").

O Alex e o Jenko rapidamente sobem montanha acima. Fico com as Anas e o Elias. Devagar, devagarinho, vamos avançando de forma controlada e decisiva. O frio tornou-se irrelevante. Esta subida tornou-se num misto de Alp d'Huez com Senhora da Graça. A inclinação final dispara, deve andar nos 70%. Arrastamo-nos, o colo está à vista, paramos para observar as avalanches com que o gelo do Salkantay nos brinda, o Elias incentiva-nos...2h30m depois, atingimos o colo...4958m...2,3km desde o início...

Celebramos ingenuamente. Tiro foto em tshirt (amarela pois claro) e trocamos high fives. Apesar das dificuldades, chegamos. Confesso o meu orgulho, nem todos os praticantes de sofá e maratonas de ingestão de maltesers conseguem chegar aqui...

Preparo-me para a descida. Como no ciclismo, é preciso agasalho..

Se subir foi complicado, descer não parece ser muito melhor. A escarpa é composta por cascalho solto, óptimo para resvalar e fazer uma bela descida até ao mundo seguinte. O trilho é muito estreito, especialmente para quem está com botas número 42.

Vou à frente, com muito cuidado mas tecnicamente todo errado. Dizem-me que tenho de meter os pés ao contrário e no trilho. Não consigo perceber qual a melhor forma para safar a coisa. Um pé meu mal cabe, quanto mais dois...

O Elias percebendo a minha dificuldade decide entrar em acção. Passa-me um bastão de trekking, pega-me pela mão (é preciso ser muito macho para contar isto) e a partir daqui...bem, digamos que foi como um elevador.

Arrastado pela montanha abaixo, tento acompanhar o ritmo desenfreado do homem, cravando o bastão com forca na parte superior da montanha. Os meus pés mal param no chão. A passada é larga. O cascalho voa por todo o lado e desce montanha abaixo. Olho por um segundo para trás e mal vejo as minhas colegas ao longe.

200 metros abaixo já percebo a técnica e continuo por mim. A descida foi rápida e estonteante mas estou vivo e inteiro..parar para respirar.

O Elias observa o horizonte de binóculos à procura do Alex e do Jenko. Já lá vão bem ao fundo. Calculo uns 2km em linha recta.

Continuamos. Mais uma subida. O corpo começa a reclamar. Começamos às 07:50 e já são 11:30. Sobe e desce sempre na casa dos 4700m. É duro mas faz-se.

A altitude e cansaço começam a afectar-nos. O Elias diz-nos que falta 1h30 para chegarmos ao local de almoço. Elas medicam-se, eu resolvo esperar. Não quero viciar o meu organismo e acredito que aguento a primeira parte final.

Errado. É o mesmo que um ciclista não cumprir a parte da alimentação a meio do percurso (pese embora aqui tenha despachado a merenda dada pelo cozinheiro de manhã - fruta e chocolates)... As subidas e descidas não parecem ter fim. Despacho a água do meu cantil para reduzir o peso às costas. Irrelevante...

Finalmente, acampamento de almoço à vista. São 12:45 e estamos a 4706m. Desço aos tropeções acompanhado por uma forte dor de cabeça da altitude. Acredito que a culpa seja da primeira descida estonteante.

Entro na tenda da messe. Estafado. Zonzo. Nem a comida ajuda.

Está na hora de recorrer ao doping: paracetamol e uma ida à wc (realmente natural) fazem milagres...

45 minutos depois de chegarmos, partimos. Segundo o programa e cálculos das rotas do vento, deveríamos estar a acabar o dia...
Nada mais errado.

As grandes diferenças entre esta caminhada e uma etapa de alta montanha da Volta à França são (além de não estar numa bici, nem de calções de lycra): a altitude exacerbada e o completo desconhecimento do percurso.

Keep calm and carry on. Continuamos. Montanha acima, montanha abaixo. Passa mais uma hora...duas..

"Elias! Quanto tempo más??!!"
"Mirem chicos! Más 30 minutos! Depués daquela montaña!"..

Escusado será dizer que montanha, após montanha, eram sempre mais 30 minutos e outra montanha.
Compreendo o Elias. Não adianta revelar totalmente a situação...

Chegamos a um topo. São 16:30. Estamos a caminhar há mais de 8 horas. O Elias observa de binóculos o vale. Procura o acampamento. Nada feito. Passamos por Cruz Qasa (local onde segundo a agência portuguesa deveríamos ter alcançado em menos de 5h e acampado) mas qualquer ser minimamente inteligente percebe que é impossível acampar neste ponto. Exposto e sem água...

Avançamos vale abaixo. Finalmente, o Elias descobre o acampamento. Ao longe...muito ao fundo...quase que rio com o surrealismo da coisa.

Apesar de tudo, fisicamente sinto-me óptimo, pese embora o natural cansaço acumulado.
Recta final, cortamos caminho para poupar mais meia hora. "Poupar caminho" aqui significa descer por uma encosta abaixo fora de trilho. Loucos, abusamos mais um pouco do que sobra dos nossos joelhos. A certa altura derrapo na inclinação, desequilibro-me e deixo-me cair de lado. Nada de especial mas evitável, não estivéssemos em pleno corta-mato...

Finalmente chegamos. São 17:35, quase 10h só de caminhada. O dobro do que estava previsto e para o qual estávamos física e psicologicamente preparados.

As Anas jogam-se para a tenda. O Jenko para a lama, estafado.

O Elias confessa-nos que este programa e trilho costumam ser feitos em 5-6 dias. Para as Rotas do Vento, a coisa tem de ser feita em 4 dias...

Estafados e revoltados. Nada nem ninguém nos preparou para isto. Fizemos pouco mais de 15,3km de subidas e descidas entre os 4500 e 5000m. A rebelião instala-se.

Perspicaz e profissional como um guia deve ser, o Elias diz-me que precisa de falar connosco pois percebe que não era isto que estávamos à espera e que nos foi "vendido".

O trilho seguinte seria igual ou pior. Acredita que eu aguentaria mas que os problemas dos joelhos do Alex e todo o esforço necessário iria deixar-nos muito perto do K.O.

Sugere uma rota alternativa pelo vale abaixo, coisa mais suave e que se faz em 5 horas conforme contratado.
Todos dizem que sim.

Pequeno problema: é preciso assegurar que o guia e restante equipa não tiveram responsabilidade na alteração, caso contrário, arriscam-se a ficar sem emprego.

"Miguel! És abogado correto?"

Anda um gajo a fugir ao Direito e acaba por praticá-lo nos Andes a 4700 metros...ninguém merece!

Redijo uma declaração onde exponho os factos, responsabilizo as Rotas do Vento e eximo o Elias e equipa de todo o processo. Assinamos todos.

O ambiente e moral melhoram.
Amanhã será um novo e acessível dia...

Entro na tenda e a neblina começa a subir pelo vale na nossa direcção. Resolvo ir à fantástica WC campesina. Mal me encontro preparado, cai-me a a tenda da WC na cabeça...ninguém merece...um dos vértices desprendeu-se do prego no chão. Monto a coisa e despacho-me pois o frio começa a apertar.

Deitado, aclimatizado, começo a adormecer... Lá fora oiço os primeiros pingos de chuva...penso para mim, é melhor que chova agora e de manhã esteja sol...

Life in Peru continues...

P.S. - Este post foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico do portunhol-miguevariano...

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